Humberto Trezzi
Fraude pode matar?
A Polícia Federal (PF) desconfia que sim. Isso porque alguns
agricultores vítimas de desvio de recursos do Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), endividados em decorrência do
prejuízo sofrido, cometeram suicídio.
Durante três dias, ZH percorreu municípios do Vale do Rio Pardo, onde vivem 6,3 mil plantadores de fumo que financiaram recursos no total de R$ 79 milhões. Algumas pessoas, desesperadas, teriam decidido se matar quando descobriram estar com débitos que juravam não ter contraído. É provável que tenham optado pela morte não apenas por esse motivo, algumas eram deprimidas, outras tinham problemas de alcoolismo.
Uma das que deram fim à vida, em maio de 2013, é Selíria Roesch, 46 anos, que morava num morro em Linha Chaves, no distrito de Monte Alverne, município de Santa Cruz do Sul. Ela sofria de depressão e piorou, segundo familiares e amigos, quando descobriu que o marido, Reneu, 56 anos, não conseguia saldar um débito de R$ 20 mil relativo ao Pronaf.
– Uma dívida irreal, inexistente – assegura Reneu.
A operação que endividou a família foi feita por meio da Associação Santa-Cruzense dos Agricultores Camponeses (Aspac), entidade ligada ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e apontada pela PF como líder do esquema fraudulento.
Conforme inquérito, a Aspac intermediava contratos dos filiados com o Banco do Brasil (BB), para obter financiamentos do Pronaf. O dinheiro liberado, em alguns casos, parava nas contas da própria associação, e parte seria repassada a contas particulares de dirigentes da entidade – sem que os agricultores soubessem.
Reneu afirma ter financiado R$ 5 mil para custeio do plantio de milho, enquanto Selíria financiou quantia inferior a essa. Um dia, foram ao BB e descobriram que tinham débito de R$ 20 mil, referente a empréstimos que não teriam pedido. Reclamaram ao próprio banco e foram até o MPA fazer o mesmo.
– Dissemos que não estava certo, nos mostraram a nossa assinatura numa autorização de débito. Neguei conhecer os contratos. Minha mulher discutiu três vezes. Na terceira, a Selíria voltou para casa chorando e, 14 dias depois, se matou – fala Reneu, que só dorme com tranquilizantes.
Ireno dos Santos, 44 anos, se matou em janeiro de 2011. Ele morava no cume de um morro em Linha Almeida, interior de Sinimbu, no qual só é possível chegar a cavalo, de moto ou a pé, em meio a uma densa mata nativa. Plantava fumo numa pequena área de seis hectares. Nem telefone tinha. Só foi encontrado três meses depois da morte.“Vivia com duas mudas de roupa”
Durante três dias, ZH percorreu municípios do Vale do Rio Pardo, onde vivem 6,3 mil plantadores de fumo que financiaram recursos no total de R$ 79 milhões. Algumas pessoas, desesperadas, teriam decidido se matar quando descobriram estar com débitos que juravam não ter contraído. É provável que tenham optado pela morte não apenas por esse motivo, algumas eram deprimidas, outras tinham problemas de alcoolismo.
Uma das que deram fim à vida, em maio de 2013, é Selíria Roesch, 46 anos, que morava num morro em Linha Chaves, no distrito de Monte Alverne, município de Santa Cruz do Sul. Ela sofria de depressão e piorou, segundo familiares e amigos, quando descobriu que o marido, Reneu, 56 anos, não conseguia saldar um débito de R$ 20 mil relativo ao Pronaf.
– Uma dívida irreal, inexistente – assegura Reneu.
A operação que endividou a família foi feita por meio da Associação Santa-Cruzense dos Agricultores Camponeses (Aspac), entidade ligada ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e apontada pela PF como líder do esquema fraudulento.
Conforme inquérito, a Aspac intermediava contratos dos filiados com o Banco do Brasil (BB), para obter financiamentos do Pronaf. O dinheiro liberado, em alguns casos, parava nas contas da própria associação, e parte seria repassada a contas particulares de dirigentes da entidade – sem que os agricultores soubessem.
Reneu afirma ter financiado R$ 5 mil para custeio do plantio de milho, enquanto Selíria financiou quantia inferior a essa. Um dia, foram ao BB e descobriram que tinham débito de R$ 20 mil, referente a empréstimos que não teriam pedido. Reclamaram ao próprio banco e foram até o MPA fazer o mesmo.
– Dissemos que não estava certo, nos mostraram a nossa assinatura numa autorização de débito. Neguei conhecer os contratos. Minha mulher discutiu três vezes. Na terceira, a Selíria voltou para casa chorando e, 14 dias depois, se matou – fala Reneu, que só dorme com tranquilizantes.
Ireno dos Santos, 44 anos, se matou em janeiro de 2011. Ele morava no cume de um morro em Linha Almeida, interior de Sinimbu, no qual só é possível chegar a cavalo, de moto ou a pé, em meio a uma densa mata nativa. Plantava fumo numa pequena área de seis hectares. Nem telefone tinha. Só foi encontrado três meses depois da morte.“Vivia com duas mudas de roupa”
Após suicídio do irmão, Vítor dos Santos descobriu que morto tinha dívidas em 11 financiamentos (Foto Ronaldo Bernardi)
Aos irmãos Sérgio e Vítor, Ireno se queixava de estar sempre sem
dinheiro. Dizia não dever tudo que lhe imputavam. Após a morte do irmão, Vítor
decidiu averiguar. Pediu extrato dos débitos ao BB, negado. Mas o inquérito da
PF revela quanto Ireno movimentou do Pronaf: R$ 36 mil, relativos a 11
operações intermediadas por representantes do MPA, entre julho de 2009 e
setembro de 2010. A maior parte, dívidas.O problema, alegam os familiares, é
que os dados desses financiamentos não seriam verdadeiros. Consta ali, por
exemplo, dinheiro para compra de dois zebus, duas vacas jersey e seis outros
bovinos.– Ireno nunca teve gado, nem financiou a compra de animais. Vivia com
duas mudas de roupa. Nem dinheiro para pagar multa da moto tinha, como
financiaria um estábulo? – questiona Vítor, que encaminhou os papéis a um
advogado, convencido de que o irmão não sabia dos empréstimos feitos em seu
nome.No inquérito, a PF listou os 134 suicídios ocorridos entre 2010 e 2013 em
nove cidades do Vale do Rio Pardo e verificou que pelo menos 10 dos mortos
estavam envolvidos em transações financeiras com a Aspac. Durante a apuração,
ZH conseguiu informações sobre cinco dos mortos, entre eles Selíria e Ireno,
cujas famílias vinculam o suicídio à suposta fraude.
Nos outros três
casos, a reportagem encontrou, além de dívidas, outros motivos que podem ter
levado à morte: um câncer em estágio avançado, problema com bebidas e depressão
provocada por um débito verdadeiro.
Investigação em várias frentes
Além da PF, duas
outras instituições abriram investigações sobre o golpe do Pronaf no Vale do
Rio Pardo. O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) decidiu impedir a
Aspac de realizar o cadastro dos agricultores. O MDA fará auditoria nas
Declarações de Aptidão do Pronaf emitidas pela Aspac nos últimos anos.
A associação também não poderá mais atuar como intermediária entre os produtores e os bancos para tomada dos empréstimos, já que também foi descredenciada pelo Banco do Brasil (BB). As medidas foram tomadas após uma equipe de fiscais entrevistar agricultores de Santa Cruz e Sinimbu que se dizem lesados na fraude.
Olinto Dutra, de Alto Paredão, deu queixa na PF contra a Aspac. Admite que assinou financiamento de R$ 5 mil em 2012, mas diz que demorou vários meses para ver o dinheiro e teria recebido apenas parte, em várias parcelas.
Loreni Golarte, também de Alto Paredão e dona de 3,7 hectares de terra, fez quatro débitos via Pronaf em 2009, nos valores de R$ 9 mil, R$ 4,7 mil, R$ 4,9 mil e R$ 2 mil. Ela diz ter sido informada pela Aspac que, para quitar os empréstimos, bastava assinar outros papéis para “rolar” a dívida. Constatou, porém, que em 2012 ainda devia o dinheiro. Pior: seu nome foi parar na Serasa como devedora.
O BB também realiza auditoria. Investiga empréstimos autorizados por sete funcionários: quatro gerentes e subgerentes de Santa Cruz do Sul e três servidores da agência de Sinimbu. Todos são suspeitos de gestão temerária em operações de risco e de não fiscalizarem devidamente os contratos do Pronaf firmados na região.
No Congresso, foi aprovada a realização de audiência para tratar do assunto. A ideia é convidar representantes do Ministério Público Federal, da PF e do MDA, além do vereador de Santa Cruz do Sul Wilson Rabuske (PT), apontado no inquérito como suspeito de envolvimento no esquema.
A PF aponta que parte do dinheiro dos financiamentos teria sido usada para pagar contas de campanha de políticos simpatizantes do MPA. O deputado Elvino Bohn Gass (PT) chegou a ser citado, mas a falta de provas contra ele e o vazamento da operação na mídia fizeram com que o Supremo Tribunal Federal desistisse da apuração a respeito do parlamentar.
A associação também não poderá mais atuar como intermediária entre os produtores e os bancos para tomada dos empréstimos, já que também foi descredenciada pelo Banco do Brasil (BB). As medidas foram tomadas após uma equipe de fiscais entrevistar agricultores de Santa Cruz e Sinimbu que se dizem lesados na fraude.
Olinto Dutra, de Alto Paredão, deu queixa na PF contra a Aspac. Admite que assinou financiamento de R$ 5 mil em 2012, mas diz que demorou vários meses para ver o dinheiro e teria recebido apenas parte, em várias parcelas.
Loreni Golarte, também de Alto Paredão e dona de 3,7 hectares de terra, fez quatro débitos via Pronaf em 2009, nos valores de R$ 9 mil, R$ 4,7 mil, R$ 4,9 mil e R$ 2 mil. Ela diz ter sido informada pela Aspac que, para quitar os empréstimos, bastava assinar outros papéis para “rolar” a dívida. Constatou, porém, que em 2012 ainda devia o dinheiro. Pior: seu nome foi parar na Serasa como devedora.
O BB também realiza auditoria. Investiga empréstimos autorizados por sete funcionários: quatro gerentes e subgerentes de Santa Cruz do Sul e três servidores da agência de Sinimbu. Todos são suspeitos de gestão temerária em operações de risco e de não fiscalizarem devidamente os contratos do Pronaf firmados na região.
No Congresso, foi aprovada a realização de audiência para tratar do assunto. A ideia é convidar representantes do Ministério Público Federal, da PF e do MDA, além do vereador de Santa Cruz do Sul Wilson Rabuske (PT), apontado no inquérito como suspeito de envolvimento no esquema.
A PF aponta que parte do dinheiro dos financiamentos teria sido usada para pagar contas de campanha de políticos simpatizantes do MPA. O deputado Elvino Bohn Gass (PT) chegou a ser citado, mas a falta de provas contra ele e o vazamento da operação na mídia fizeram com que o Supremo Tribunal Federal desistisse da apuração a respeito do parlamentar.
Fraude pode ter afetado esperança, diz psicóloga
Perda de dinheiro,
de confiança no outro, de esperança no futuro. Esses são sentimentos que podem
ter se abatido sobre as pessoas atingidas pelas fraudes no Pronaf. E que podem
ter levado algumas a dar fim à própria vida.
A interpretação é de Rosângela Werlang, doutora em Psicologia Social, professora na Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (Fisul) e especialista em suicídios nas áreas rurais do RS.
– Uma dívida impagável que a pessoa pensa não ter contraído abala certezas. Existe ainda a vergonha: Como fui deixar isso acontecer? Isso corrói a confiança em si e no outro. E, nesse quadro, vem a antecipação do futuro, por meio do suicídio, que é a total desesperança – diz Rosângela.
A especialista não descarta que os agricultores já tivessem sofrimento psíquico, mas avalia que os fatores externos podem ter influenciado na decisão.
– Tudo indica que, com dívidas e sem dinheiro, lesadas, usadas e não visualizando um futuro adequado, essas pessoas optaram pela morte – afirma Rosângela.
Essa questão deve ser tratada, na opinião dela, de forma coletiva, para evitar que os agricultores sintam-se sozinhos. Devem unir-se para que a dor seja menor e a autodestruição seja substituída pela superação.
A interpretação é de Rosângela Werlang, doutora em Psicologia Social, professora na Faculdade de Integração do Ensino Superior do Cone Sul (Fisul) e especialista em suicídios nas áreas rurais do RS.
– Uma dívida impagável que a pessoa pensa não ter contraído abala certezas. Existe ainda a vergonha: Como fui deixar isso acontecer? Isso corrói a confiança em si e no outro. E, nesse quadro, vem a antecipação do futuro, por meio do suicídio, que é a total desesperança – diz Rosângela.
A especialista não descarta que os agricultores já tivessem sofrimento psíquico, mas avalia que os fatores externos podem ter influenciado na decisão.
– Tudo indica que, com dívidas e sem dinheiro, lesadas, usadas e não visualizando um futuro adequado, essas pessoas optaram pela morte – afirma Rosângela.
Essa questão deve ser tratada, na opinião dela, de forma coletiva, para evitar que os agricultores sintam-se sozinhos. Devem unir-se para que a dor seja menor e a autodestruição seja substituída pela superação.
“Decidi viver”, afirma produtor
Devedor de um financiamento de R$ 14 mil, Paulo César Back constatou ter mais dois débitos que não reconhece (Foto Ronaldo Bernardi)
Alto Paredão, distrito de Santa Cruz do Sul, justifica o nome. É uma
área rochosa, escarpada, recortada por trilhas de difícil acesso. Fala-se ali
mais o Hunsrückisch (dialeto alemão) do que o português. É também o epicentro
da maioria dos casos relacionados à fraude do Pronaf.
Morador do distrito, Paulo César Back
parcelou R$ 14 mil de Pronaf em 10 anos, em prestações de R$ 1,4 mil. Fez isso
mediante contrato com o Banco do Brasil, intermediado pela Aspac. Pagou a
primeira parcela e descobriu, em 2012, que tem mais dois débitos, de R$ 4,7 mil
cada, que afirma jamais ter contratado. Foi parar na Serasa.
Não tem como
custear advogado: conta apenas com uma junta de bois para trabalhar a terra. À
família, chegou a dizer que iria se matar.
– Agora estou mais
calmo. Decidi viver, enfrentar. Quero é justiça – conclui.
CONTRAPONTO
O que diz
Wilson Rabuske, coordenador do MPA em Santa Cruz do Sul e investigado pela PF
Nega a existência da fraude e
assegura que os produtores receberam cada centavo do que financiaram. O
dirigente afirma acreditar que o assunto tenha vindo à tona por “motivações
políticas”, já que o tema vazou às vésperas do primeiro turno. Veja o que
Rabuske diz sobre os temas levantados pela PF.A relação
do MPA e da Aspac com o Pronaf
Diz que as entidades ajudavam os agricultores,
fazendo o contato entre eles e o Banco do Brasil. Avalizava a aptidão dos
associados em contrair empréstimos.
– A Aspac até
adiantava financiamentos e cobrava depois.
Dinheiro
nas contas da Aspac
Admite que, em alguns casos, o
dinheiro dos empréstimos era transferido para uma conta da Aspac. Diz que isso
era autorizado por agricultores que ainda não tinham nota fiscal de produtor
rural, vital para prestar contas de financiamentos. O dinheiro teria sido
devolvido integralmente aos agricultores, embora muitos neguem.Descontos
feitos pela Aspac nos empréstimos
Reconhece que o MPA cobrava
taxas, em média de R$ 150, para intermediar os financiamentos, “um procedimento
regular, como uma contribuição associativa”.Dinheiro
da Aspac nas contas de Rabuske
Admite que algumas vezes usou suas contas bancárias
e as da mulher para receber dinheiro das contas da Aspac, para
ressarcimento de despesas que ele teve com agricultores ou até porque o seu
limite bancário era maior do que o da Aspac. Diz não lembrar se informou isso à
Receita. A PF considera as operações irregulares. Sobre os
suicídios Cita
vários casos de suicídio e diz que o Pronaf dessas pessoas foi pago, está tudo
correto.– Talvez esses que se mataram estivessem muito endividados com
fumageiras. Talvez o Pronaf e o MPA até tenham ajudado eles quando precisaram.
É irresponsabilidade vincular as mortes às dívidas.
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