Aos que se deslumbram com a filosofia, é deveras considerável descobrir
como foram as vidas de grandes filósofos, quais acontecimentos os motivaram
a frequentar o terreno tão sensível, íntima e coletivamente, do fazer filosófico.
É a essa revelação que a diretora Liliana Cavani procurou nos apresentar com o
filme Além do bem e do mal (1977), recorte biográfico de Friedrich Nietzsche.
É natural que diante de uma personalidade tão complexa e transgressora quanto
foi o filósofo alemão estabeleça-se determinado foco temporal e temático que
melhor represente o aspecto de sua vida que pretende-se retratar. Assim, Cavani
preferiu iniciar sua película em um momento da trajetória de Nietzsche em que
ele já deixou de ser apenas o filólogo filho de pastores luteranos e passou a ter
contato direto com a filosofia e com figuras fundamentais à sua concepção
como um dos maiores nomes do pensamento mundial, como por exemplo o
compositor Richard Wagner.
A primeira cena da cinebiografia é composta, entre outros elementos, por duas
presenças elementares para a formação de Nietzsche: a saúde debilitada que
guiará muitos de seus estudos e convicções, e o médico amigo Paul Rée.
O filme mostra que por conta de Rée Nietzsche conhecerá aquela que foi sua maior paixão, a intrigante russa Lou Salomé. É o relacionamento entre os três que direcionará a visão do filósofo ao raciocínio moderno, ao questionar das relações humanas e da existência em seu tempo.
Essa relação também serve como cerne à produção cinematográfica de Cavani
e através dela a diretora italiana explorará alguns dos argumentos principais
da obra nietzschiana, especialmente as críticas à moral naturalizada. Nos
encontros entre os três, como imaginados e reproduzidos por Liliana, é
posto em prática de maneira escandalosa o repúdio à moralidade característico
de Nietzsche. Pela exploração da sexualidade, Cavani
vai além dos padrões esperados de uma biografia, além da dicotomia redutora
entre o bem e o mal. Claire Clouzot aponta que:
A interpretação que ela faz de Nietzsche transgride os códigos de nossa cultura.
Por isso ela nos fascina. Por isso ela é nietzschiana. Não há mais bem e mal.
Somente três princípios: o amor, o masculino e o feminino em busca do ‘riso eterno’.
Ao precisar essa antimoral como motor do trio, o filme faz com que os três sejam
continuamente contrastantes ao restante da sociedade ainda regida pelas leis morais.
Cássio Starling Carlos diz que
Se as formas da sexualidade interessam tanto à diretora é porque ela enxerga
ali uma promessa de liberação das identidades fixas, a possibilidade de
experimentar papeis fora das normas sociais, de subverter a tradicional
balança de poder entre masculino e feminino.
De fato, Além do bem e do mal não traz nada da tradicional sobrepotência
masculina sobre as mulheres. Muito pelo contrário, a impressão que o filme
passa é de que Nietzsche possui pouco ou nenhum poder sobre a própria vida
diante das figuras femininas que a permeiam, representadas pela amante
Lou Salomé e pela irmã Elisabeth. À minha visão pessoal, porém, tornou-se
por vezes cansativa a presença contínua do elemento sexual, reiterado por
essas duas presenças, explícito em todos os momentos. Talvez porque
esperasse mais da reprodução do processo de criação teórica de Nietzsche,
a verdade é que senti Lou Salomé como uma personagem muito mais
interessante e relevante no filme do que o próprio filósofo, o que
não seria problema algum caso a proposta da obra fosse outra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário