Devo ficar com esta carteira cheia de dinheiro ou devolvê-lo ao dono?
“Arigatô
Em menos de 24 horas um casal de catadores de material reciclável que vive debaixo de um viaduto no Tatuapé, zona leste de São Paulo, viu sua vida virar do avesso.
No período, eles acharam R$ 20 mil furtados de um restaurante, entregaram o valor para a polícia e apareceram em emissoras de TV como exemplo de honestidade (...)
A reviravolta na vida de Rejaniel de Jesus Silva Santos, 36, e de Sandra Regina Domingues, que não sabe a própria idade, começou por volta das 3h30 de ontem, quando acordaram com o alarme de um restaurante tocando.
Levantaram-se e foram ver o que estava acontecendo. Enquanto caminhavam, Santos achou, debaixo de uma árvore próxima a um ponto de ônibus, duas sacolas e uma bolsa preta com cédulas, moedas e comprovantes de pagamentos de cartões de crédito (…)
Por meio dos comprovantes de pagamento, os policiais chegaram ao restaurante Hokkai Sushi. Lá, constataram que uma janela tinha sido arrombada e o dinheiro do caixa levado. A polícia acredita que os bandidos deixaram o dinheiro embaixo da árvore pois havia policiais por perto e voltariam mais tarde (…)
‘A minha mãe me ensinou que não devo roubar e se vir alguém roubando devo avisar a polícia. Se ela me assistir pela TV lá no Maranhão vai ver que o filho dela ainda é uma das pessoas honestas deste mundo’, afirmou.”
Quem acha não é dono, exceto quando o que achou é um tesouro, ou ficar claro que houve renúncia ou abandono da propriedade pelo verdadeiro dono.
Se for um tesouro, quem achou tem direito a fica com a metade e o dono do local onde foi achado fica com a outra metade. Se for algo perdido, quem acha e devolve recebe uma recompense de, no mínimo, 5% do valor devolvido.
Mas, convenhamos, 5% (no caso do que havia sido perdido) ou 50% (no caso de um tesouro) não são lá essas coisas quando a outra opção é ficar com 100%. No caso da matéria acima, se você acha R$ 20 mil na rua e sabe que vai receber ‘apenas’ R$ 1 mil de recompensa por devolver, você tem 19 mil razões para não devolver.
Enfim, moral e racional podem entrar em choque.
Como a lei sabe que nem todas as mães se preocuparam em preparar seus filhos moral e civicamente para viverem em sociedade, e que ainda menos filhos aprenderam as boas lições ensinadas por suas mães, a própria lei prevê punições para quem não devolve o que achar. E aí saímos da esfera civil e entramos na esfera criminal e caímos em um desses dois crimes:
Apropriação de tesouro
Se você acha um tesouro (um objeto precioso antigo, oculto e de cujo dono não haja memória) na propriedade de outra pessoa e se recusa a dar metade para o dono da propriedade onde ele estava, você está cometendo o crime de apropriação de tesouro.
Já se você foi contratado para achar o tesouro e se recusa a entregá-lo a quem o contratou, você está cometendo o crime de furto porque o tesouro que você achou não te pertencia e jamais te pertenceria (pertencia a quem te contratou). Esse é o mesmo crime que você terá cometido se achar um tesouro na propriedade de uma outra pessoa quando não tinha autorização dela para estar lá.
Apropriação de coisa achada
O outro crime – muito mais comum – é a apropriação da coisa achada, que é o crime que as duas pessoas da matéria acima teriam cometido se não devolvessem o dinheiro.
Primeiro, o objeto precisa estar perdido para ser achado. A coisa perdida é aquela que se encontra em lugar público (debaixo de um viaduto, por exemplo) ou de uso público (um aeroporto, por exemplo). Algo que você apenas esqueceu não está perdido. Por exemplo, se você deixa sua carteira no restaurante, ela não está perdida: basta você voltar lá e pegá-la de volta. Logo, se o garçom ficar com ela para ele, ele estará cometendo furto e não apropriação de coisa achada.
Aliás, para a lei você nunca perde nada dentro de sua própria casa: você só não sabe onde ela está! Se você não consegue encontrar a chave de seu carro, seu celular ou sua aliança de casamento, mas eles estão dentro de sua casa, eles não estão perdidos. Por isso, se alguém os acha e fica para si, é furto e não apropriação de coisa achada.
Já ficar com um objeto que foi abandonado ou ao qual o dono renunciou, não é crime porque ele já não pertencia a ninguém quando você o encontrou.
Enfim, no caso da matéria acima era coisa perdida porque estava em local público e o dono não sabia onde estava.
Bem, achar coisa perdida não é crime: é sorte. Crime é quando você se recusa a devolvê-la. Segundo o art. 1.170 do Código de Processo Civil, você tem 15 dias para entregá-la à autoridade pública ou ao dono. Mas você pode passar desse prazo sem entregar o bem à polícia sem estar cometendo o crime: basta comprovar que ainda está efetivamente tentando achar o dono. Da mesma forma, não é necessário que haja o transcurso dos 15 dias para o crime estar configurado: basta você passar a agir como se fosse o dono da coisa antes disso. Na matéria acima, se eles em vez de procurarem a polícia houvessem usado o dinheiro, estariam cometendo o crime de apropriação de coisa achada.
Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuito ou força da natureza
Existe um outro crime chamado apropriação por erro, caso fortuito ou força da natureza que é parecido com os dois crimes acima. A diferença é que a pessoa recebe o objeto (ela não o acha) da vítima devido a um erro (por exemplo, o banco mandou o dinheiro para um homônimo ou a pessoa comprou uma cueca e dentro dela havia milhares de notas de dinheiro), devido a um caso fortuito (por exemplo, o papagaio do vizinho voa para dentro de sua casa) ou pela força da natureza (por exemplo, a chuva derruba alguns barracos no morro e a televisão de um vai parar na casa do outro). A pessoa sabe que o objeto não é seu, mas fica com ele assim mesmo.
Enfim, se você olhar todas as situações acima verá que o ditado popular está correto: achado não é roubado. Isso porque roubar exige violência ou grave ameaça. E quando você acha algo você sequer sabe quem é o dono. Mas achar e não devolver não deixa de ser crime.
Nenhum comentário:
Postar um comentário