Setenta e três anos depois da publicação da foto-síntese da desigualdade social na Grã-Bretanha, a descoberta da vida real por trás da imagem
IAN JACK
A foto tirada por Jimmy Sime numa manhã de 1937, à entrada do portão principal do Lord’s Cricket Ground, de Londres, eternizou-se como a face do abismo entre as classes sociais na Inglaterra JIMMY SIME_HULTON ARCHIVE_GETTY IMAGES
Quase desde a sua invenção, a fotografia adquiriu o costume de transformar pessoas em símbolos por acidente. Um pintor pode gastar um ano inteiro numa tela, construindo a representação personificada de uma ideia abstrata – como “O Triunfo da Verdade” ou “A Recusa da Tentação” – em todo seu esplendor visual. Mas a câmera só tem uma fração de segundo para capturar uma cena. E se essa cena for de algum modo marcante e memorável – em sua composição, tema, luz – ela pode se tornar “icônica”, ou seja, seus elementos podem ser entendidos como uma referência a emoções, conflitos e problemas de ordem bem mais geral.
Quando o obturador dispara, um futuro metafórico desse tipo raramente é imaginado pelo fotógrafo ou seus modelos, que podem nem mesmo estar cientes de que uma foto está sendo tirada. E o instante captado tanto pode ser banal quanto extraordinário: um casal que se beija numa rua de Paris, um camponês e sua família na Califórnia, uma criança queimada que corre pela estrada no Vietnã. Uma foto assim pode acontecer em qualquer lugar. Até mesmo num tradicional jogo de críquete inglês.
Em 1937, já fazia 132 anos que as duas escolas particulares mais célebres da Inglaterra, Eton e Harrow, vinham disputando jogos anuais de críquete, a modalidade de esporte coletivo com bola mais antiga e duradoura do mundo. É provável também que a partida fosse, como continua a ser, a competição disputada há mais tempo na história do esporte.
Junto com as corridas em Ascot e as regatas de Henley, as partidas entre Eton e Harrow no estádio Lord’s Cricket Ground, ou Lord’s, em St.John’s Wood haviam se transformado num dos momentos altos da temporada social londrina. Duravam dois dias, e atraíam grandes multidões – os espectadores chegaram a mais de 30 mil na primeira década do século XX. Alunos e ex-alunos das duas escolas compareciam com as suas famílias, de modo que a plateia reunia juízes, diplomatas, escritores populares (e impopulares), proprietários de terras, membros do Parlamento, financistas, bispos e duques: riqueza, privilégio e distinção de todo tipo. De suas carruagens emergiam cestas de piquenique com sorbets e champanhe gelada, e almofadas para tornar mais macios os assentos de madeira das arquibancadas. O público masculino comparecia de casaca e cartola, as mulheres de chapéu e vestido de verão.
Quanto aos próprios alunos (os harrovians e etonians), cabia-lhes apresentar-se de acordo com a norma de formalidade máxima exigida para a ocasião. Com pequenas variações de estilo, que apenas um estudioso muito capacitado do sistema social inglês conseguiria distinguir, os estudantes das duas escolas envergavam a indumentária que em algum momento do século XIX tinha se transformado no uniforme do gentleman inglês: cartola, casaca, colete de seda e bengala.
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