Antônio Carlos Secchin
Melancolia, de Carlos Cardoso, reafirma, para além da originalidade de uma poesia saudada, entre outros, por Silviano Santiago e Antonio Cicero (in: Na pureza do sacrilégio, 2017), a vocação nômade de uma palavra simultaneamente atenta ao que escapa e ao que se condensa. A matéria em expansão na vida vegetal e animal — em floragem, nas suaves folhas secas, no canto dos sapos — contraposta à condensação e a contenção da matéria mineral, sobretudo nas pedras estrategicamente situadas em várias partes do livro. Ainda que, na incessante dissolução de previsibilidades, tenhamos, com frequência, uma pedra em movimento e em metamorfose.
Também numa sutil composição, a “Melancolia” que nomeia a obra não se oferta de início: emerge no poema 2, melancolia assim oculta pela “Floragem” que graficamente a encobre na folha anterior. A palavra-título se dissemina ao longo do livro, retornando ainda na penúltima página do derradeiro poema da coletânea.
As relações deceptivas com o real constituem uma das tônicas da obra. Sucessão de pequenos desencontros, de paisagens mal percebidas, da consciência de perdas — tudo isso, de modo personalíssimo, vazado num “tom menor”, baixossonante, em que a palavra pura, e não o combustível da raiva, parece alimentar a força do poeta:
Rasgo meu destino
e o trago sem revolta
retiro do bolso minha arma
uma folha de papel
e uma caneta,
não há pólvora!
O destino, portanto, é o que perdura como fragmento de um projeto (rasgado, o poeta o traz) e, ao mesmo tempo, aquilo que, de qualquer modo, não pode ser abandonado: embora rasgado, ele o traga, incorpora.
O veio metalinguístico, bastante ostensivo nessa e em outras peças do volume, elabora uma espécie de poética da negatividade, em que mais se destacam os limites do que o alcance dos signos, cerceados, mas imantados pela miragem de um além inominável.
Para esse livro
não escreverei
o que é fácil de entender
o que é fácil de ler
***
o ilimitável me conduz
nessa terra vasta de luz pouca
Retiro das palavras
o que não foi dito
Esse não dizer das palavras é o horizonte a que aspira o poeta. Não o silêncio prévio ao dizer, e sim o silêncio para além do que pôde ser dito, e que resiste como núcleo infranqueável e impermeável à verbalização.
Heloisa Buarque de Hollanda destaca em Cardoso a poesia como técnica de sobrevivência. O poeta é o que permanece “incansavelmente acordado”, ainda que seja para contemplar o vazio. A parede-poema que o sustenta se ergue “de tijolos maciços/ com maçarico, / argila, cuspe, / e minhas próprias mãos”. Nesses versos, há uma confissão de que a matéria exterior e a íntima amalgamam-se num só corpo, e é em tal fusão que se perfaz a poesia: “Este livro sou eu.”
Num desdobramento radical de famoso verso de Paul Valéry, “Os acontecimentos me aborrecem” (“Les événements m’ ennuient”), Carlos abraça o viés do desacontecimento: a carga da matéria explicitamente referencial, geográfica, histórica, de seu discurso é tênue (surgem, aqui e ali, referências à cidade do Rio de Janeiro). Contra a crueza realista do dado empírico, lá estão “meus pensamentos/ a delirarem nas nuvens”. Daí, talvez — alçada às nuvens — a sensação constante de que algo não se materializa, evanesce, não se deixa tocar: desacontece.
Há, todavia, gradações no tom “melancólico” do livro, no que tange à estratégia comunicativa dos poemas, num arco que engloba tanto peças bastante cifradas quanto outras, alocadas em maioria no final do conjunto, em que aflora um discurso de maior transparência, a exemplo de “Poeminha”, não por acaso dedicado a Vinicius de Moraes:
Minha menina é tão bonita
canta feito passarinho
me acorda cedo ao dia
me abraça ao deitar à noite
é mais ágil que o vento
tão cheirosa feito as flores
sabe o que está em meu pensamento
sabe de todos meus desamores
“O passado é mais hoje que o presente.” Sim, como afirmava verso do anterior Na pureza do sacrilégio, “A memória é uma porta de escape”. Carlos Cardoso agora a transpõe, para urdir o irresistível encontro da memória com a imaginação, cristalizando esse outro modo de falar que se chama poesia. Se os “deuses são metáforas”, o verbo poético contém e estampa a centelha divinamente humana que forja o ofício do poeta. Em diálogo implícito com o Drummond de “Tudo é teu, que enuncias”, declara Carlos Cardoso: “Essa paisagem me pertence, / mar, árvores, ferrugens, aves” — todas as modalidades da matéria, mineral, vegetal, animal. Num só verso o universo se condensa, e cabe à poesia ritualizar perpetuamente a encenação de um mundo sem origem e sem fim. É o que faz, com talento e consistência, Carlos Cardoso, em Melancolia.
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