sexta-feira, 5 de agosto de 2022

O REGIME MILITAR NO BRASIL : REVOLUÇÃO OU GOLPE?


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- Artigo atualizado no dia 20 de abril de 2019 -

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No decorrer da década de 1950, o Brasil experimentava um período de crescente euforia e esperança de um Estado mais democrático. A inauguração de Brasília acompanhou um aquecimento da economia, industrialização e substancial desenvolvimento, além de uma explosão cultural e de ideias fomentando a busca por justiça social. Porém, o recente fim da Segunda Guerra Mundial também marcou o início da Guerra Fria entre as duas potências que fortemente ascenderam após as duas Grandes Guerras: EUA e União Soviética, ambos carregando ideais contrários de gestão Estatal e econômica, mas possuindo o objetivo comum de influenciarem o maior número possível de nações ao redor do mundo.

          Até o final da década de 1950, o Brasil tinha escapado de ser atingido em significativa extensão pelo embate entre Comunismo e Capitalismo. Isso mudou drasticamente quando Cuba foi tomada pelo governo revolucionário, o qual havia chegado ao poder em 1959, liderado por Fidel Castro e Che Guevara e inspirado nos ideais Comunistas. Nesse momento, os EUA viram que a América Latina não estava imune contra a influência Soviética. As consequências desse cenário começaram a fomentar e amplificar crescentes inquietações de alguns setores na sociedade Brasileira, culminando anos mais tarde na deposição de João Goulart e a subida dos militares ao poder em 1964.

          De um lado, os militares até hoje defendem a tomada de poder em 1964 e os atos subsequentes como parte de uma Revolução Democrática e de uma rígida luta pela democracia a pedido do povo e contra a iminente Revolução Comunista que supostamente estava se ascendendo no país desde o início da década de 1960 no governo de João Gourlart. Do outro lado, o consenso entre os historiadores e acadêmicos é claro: o processo inicial de ascensão dos militares foi um golpe contra a democracia, culminando em uma repressiva e violenta Ditadura que se estendeu pelas duas décadas seguintes.

          Esse debate recentemente foi reacendido em meio ao contexto do conturbado período eleitoral de 2018 e eventual eleição do presidente Jair Bolsonaro no Brasil. Em 2018, outro incidente também marcou esse reinício caloroso de debate, quando o então recém novo presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Ministro Dias Toffoli, causou grande controvérsia ao afirmar em uma palesta na Faculdade de Direito da USP que a tomada de poder pelos militares em 1964 não foi um golpe ou uma revolução, e, sim, um 'movimento' (Ref.1-2). Segundo Toffoli, tanto os setores de esquerda quanto os setores de direita tentam jogar toda a culpa nas Forças Armadas, concluindo que todos carregam culpa. Ainda segundo o ministro, o erro dos militares foi terem permanecido no poder. O Centro Acadêmico 11 de Agosto, entidade que representa os alunos da Faculdade de Direito da USP, respondeu com repúdio à declaração do ministro, especialmente considerando que ela ocorreu em discurso sobre os 30 anos da Constituição.





   O DISCURSO MILITAR

          Em 1964, meses após o fatídico 31 de Março, um artigo foi publicado na famosa revista Seleções do Reader´s Digest - versão brasileira da revista Norte-Americana Reader´s Digest, criada em 1922 - o qual exaltava a subida ao poder dos militares. Reeditado em 1978 sob o título "A Nação que se salvou a si mesma. 31 de Março: 1964-1978" e publicado pela Biblioteca do Exército Editora, esse artigo é considerado o marco fundador nos diversos escritos memorialísticos de militares sobre o período do regime militar no Brasil. Aliás, em sua reedição, o Exército fez questão de promover sua distribuição entre a população.

           O objetivo desse artigo era supostamente responder ao questionamento dos críticos na época ao regime militar se o país realmente sofria uma ameça comunista ou se tudo não passou de um exagero dos 'militares golpistas', alarmados com o "perigo vermelho" a serviço dos interesses Norte-Americanos e de seu militarismo. Um trecho importante desse artigo deixa a resposta do autor bem clara:

"A História inspiradora de como um povo se rebelou e impediu os comunistas de tomarem conta de seu país.
Raramente uma grande nação esteve mais perto do desastre e se recuperou do que o Brasil em seu triunfo sobre a subversão vermelha. Os elementos da campanha comunista para a dominação – propaganda, infiltração, terror – estavam em plena ação.
A rendição total parecia iminente... e então o povo disse: Não!...
Nos calendários dos chefes vermelhos do Brasil – assim como nos de Moscou, Havana e Pequim – as etapas para a conquista do poder estavam marcadas com um círculo vermelho: primeiro, o caos; depois, a guerra civil; por fim, domínio
comunista total.
Havia anos que os vermelhos olhavam com água na boca o grande país ... A captura deste fabuloso potencial mudaria desastrosamente o equilíbrio de forças contra o Ocidente. Comparada com o ... [Brasil], a comunização de Cuba era insignificante." (Ref.3)

          No geral, o artigo responsabiliza os intelectuais e demais extremistas de esquerda de semearem a ideia que uma revolução comunista era necessária e iminente no território brasileiro. Nesse sentido, o povo, especialmente a classe média e os empresários, teria pedido a salvação aos militares, estes os quais teriam apenas respondido aos clamores da sociedade. Somando-se a isso, existiria também atrelado - em segundo plano - uma luta contra a corrupção e a incompetência que alegadamente assolavam o governo de Goulart.

          Antes da reedição deste artigo em 1978, diversos outros artigos tinham sido lançados como propaganda pelo regime militar, como o "Ensaio sobre a Doutrina Política da Revolução", do general Carlos de Meira Mattos; "Em torno de uma Sociologia de Processos Revolucionários de Transformação Social: exemplos brasileiros", do sociólogo Gilberto Freyre; "Para a Normalização do Brasil", de Gustavo Corção; "O Processo Revolucionário Brasileiro", do general Octávio Costa (Ref.3). Todos esses artigos vieram em uma defesa apaixonada dos eventos de 1964 e anos subsequentes, reforçando o perigo iminente do comunismo e o apelo da sociedade pela intervenção da ordem militar. Freyre, aliás, reforça que a Revolução de 64 foi esplêndida pelo fato de não ter envolvido a violência vista nas Revoluções Comunistas, fator que teria sido importante para o alcance do 'reajustamento social' durante o período de governo militar.

          Em 1987, dois anos após o fim oficial do regime militar, o general Tasso Villar Aquino, em um dos seus vários discursos de defesa ao 'Movimento de 64', afirmou: "Não foi um ‘golpe’, como procuram impingir à Nação os serviçais de Moscou, atuantes no Brasil desde 1922. Atuação que jamais cessará porque o Brasil é para o imperialismo totalitário soviético, ‘Estado alvo’ da maior importância, pelas características geopolíticas do seu espaço físico, excepcionalmente favoráveis." (Ref.4) Tasso frequentemente também martelava a necessidade de foco no 'terrorismo' da esquerda, citando que guerrilheiros contra o regime militar foram responsáveis por dezenas de mortes no país.

          Já em 1989, os ministros das Forças Armadas do governo Sarney assinaram Nota Oficial celebrando os 25 anos do 'Movimento Revolucionário de 1964', glorificando os avanços na liberdade e democracia alegadamente resultantes: "Vivíamos momentos de intranquilidade, desmoronavam as instituições mais caras e, com elas, a paz social e o desenvolvimento do país. Mobilizavam-se aparatos de propaganda buscando a agitação: o grevismo alastrava-se trazendo implacáveis prejuízos ao crescimento econômico e ao bem-estar da população; era atingida a base institucional das Forças Armadas: a hierarquia e a disciplina." (Ref.5)

          Em 1994, o general Carlos Meira Mattos, apesar de concordar que 1964 foi o ponto de partida de uma transformação profunda e positiva na estrutura econômica, política e social brasileira, admite que erros foram cometidos, mas que estes são compreensíveis e inerentes a todo processo revolucionário: “no seu dinamismo próprio, forçam caminhos e impõem soluções que nem sempre são as da normalidade e das expectativas anteriores... eis o itinerário pelo qual os povos se salvam de suas crises, e lançam as linhas vitoriosas de sua história.” (Ref.3)

          Em 31 de março de 1999, o atualmente famoso e polêmico Olavo de Carvalho, iniciou um movimento de duras críticas àqueles que procuravam criminalizar a 'Revolução de Março' com supostas falsificações históricas e associações descabidas com uma espécie de "nazifascismo tupiniquim". Sua principal manifestação nessa época foi um discurso nomeado de 'Ordem do Dia e Ordem Pública' (Ref.27). Segundo Olavo, essas eram calúnias comuns de grupos de esquerda e do governo FHC de centro-esquerda em um país sem direita. Essas críticas também englobavam a mídia e setores religiosos ditos por Olavo como fantoches do comunismo.

          Em ressonância com Olavo, o general Thermistocles de Castro, na mesma época, também teceu duras críticas ao governo FHC (1995-2003), denunciando que o país estava quebrado, falido e sem crédito, e que a população em sua maioria sentia falta do período militar. Em geral, a partir da virada do século XXI, os membros do Exército, especialmente aqueles que viveram no período de 1964-1985, passam a exaltar o saudosismo e o ressentimento pela memória histórica distorcida que se impôs à sociedade através da mídia, dos acadêmicos e dos materiais escolares 'de esquerda'. Nos últimos anos, essa situação criticada pelos militares começou a se inverter, com a defesa ao período militar influenciando uma parcela cada vez maior da sociedade, principalmente através das crescentes ramificações da internet. Essa tendência também fomentou grupos fortemente contrários ao discurso militar a insistirem no pedido de abertura dos arquivos da ditadura militar a partir de 2009.



   REVOLUÇÃO OU GOLPE?

          Apesar dos militares apreciarem o termo 'Revolução' para se referirem aos eventos de 1964, o objetivo anunciado desse grupo não foi exatamente plantar e investir em uma nova ideia para a construção de algo novo no país, mas, sim, combater Goulart, combater a corrupção, combater a subversão e, em especial, combater o comunismo.  Foi um movimento mais característico, à primeira vista, de uma contra-revolução.

          A segunda análise importante a ser feita recai no principal argumento de justificativa ao 31 de março. Em outras palavras, o quão real era o perigo imposto pela alegada Revolução Comunista que estaria ganhando forma no governo de Goulart? Bem, de fato, durante o período de 1961 até 1964, houve um fortalecimento das reivindicações operárias e crescente conflito entre as classes, onde os setores dominantes da sociedade e suas elites ideológicas criticavam cada vez mais a assim alegada baderna, anarquia, subversão e comunização do país. Porém, nada indicava uma ilegitimidade nas iniciativas de confronto dos operários, camponeses, estudantes, soldados, entre outros setores de menor poder aquisitivo, por melhores condições de trabalho, justa remuneração e maiores direitos. Essa situação refletia mais uma ampliação da democracia do que um ataque sistemático de lideranças comunistas.

          Mas esse último ponto não entrou na pintura do quadro entregue pelos militares.



   JANGO E O 'COMUNISMO'

          O governo de João Goulart - apelidado desde a infância de 'Jango' - teve início sob conturbadas circunstâncias políticas e já sob forte contragosto dos militares. Em meio a uma crise política, Goulart assume a Presidência da República, após Jânio Quadros ter renunciado em 25 de agosto de 1961.

          Durante seu breve período de governo, Jânio promoveu diversas medidas que desagradaram o Congresso e os grupos conservadores. Primeiro, ele alcançou acordos comerciais e diplomáticos com a China e a URSS, algo mais do que polêmico em um contexto de Guerra Fria, criticando também o imperialismo representado pelos EUA aqui na América Latina. Também implementou medidas que diminuíram drasticamente os benefícios aos grupos mais ricos e poderosos, inclusive grandes jornais. Instalou também sistemas anti-corrupção e de enxugamento da máquina governamental, além de tentar aprovar o projeto de uma reforma agrária (algo que, sozinho, o levou a receber o rótulo de 'comunista').

          Já pressionado pelos Ministros Militares, Jânio acabou renunciando, mas esperava que o povo se revoltasse e exigisse sua volta, algo que não ocorreu em nenhuma extensão devido, em parte, a articulações políticas já prevendo tal cenário de golpe. Nesse sentido, seu vice, Goulart, acabou herdando a Presidência, processo não esperado de ser permitido pelo Congresso. Goulart, apesar de ter sido um adversário político de Jânio (nessa época, o vice era eleito separadamente) já vinha também com uma fama de 'esquerdista' e 'comunista' pelos grupos conservadores da época por ter atuado no Ministério do Trabalho durante o governo democrático de Getúlio Vargas (1951-1954) de forma a praticamente dobrar o salário mínimo do trabalhador e levar adiante o projeto da reforma agrária. Isso piorou quando Jânio o enviou para uma longa viagem diplomática na China. Mas a politicagem do seu cunhado, Leonel Brizola, o ajudou a jogar bem as peças de modo a driblar as figuras de direita do cenário político (Ref.6).





          No entanto, na tentativa de evitar que o poder fosse para as mãos de Goulart, os militares decretaram a instalação do Parlamentarismo, o qual só veio a ser derrubado em janeiro de 1963,
quando o presidente reprimido realizou um plebiscito 'Parlamentarismo X Presidencialismo'. Essa vitória ocorreu por causa de estratégias populares bem arquitetadas por Goulart e aliados que tinham como objetivo agradar as centrais sindicais e grupos moderados para o fomento de uma votação positiva - uma das principais ações foi a de aumentar o salário mínimo em 75%.

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