O professor Waldemiro Gremski reitor da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUCPR) deu na Gazeta do Povo uma entrevista feita pelo repórter Jônatas
Dias Lima. Falando de ciência e fé, haja vista sua formação em História Natural, com
doutorado em Histologia e pós-doutorados na Suécia e nos Estados Unidos. E é um
católico convicto. Na infância, estudou em um seminário, de onde saiu para
fazer faculdade. Na entrevista, que vocês conferem abaixo, fala-se um pouco da
sua carreira, de como as universidades podem ajudar a construir pontes entre
ciência e religião, e sobre como a PUCPR vai lidar com o tema em sua gestão.
Como foi essa
transição do seminário para a vida científica e acadêmica?
Um aspecto importante
em minha vida é a formação religiosa familiar. Venho de uma família polonesa
extremamente religiosa, tanto que acabei indo para o seminário, com 11 anos, e
fiquei até os 19. O seminário teve uma influência muito forte na minha vida,
principalmente em termos de entender a fé como algo do dia a dia, e não como
algo confinado a ritos, a ir à missa, esse tipo de coisa. Nesse sentido, os
padres foram muito importantes em minha formação no seminário, e foi de lá que
veio aquela visão de que é possível viver a vida científica, como pesquisador,
sem que haja dificuldade com a fé.
Algum professor do
seminário, em especial, contribuiu para despertar seu interesse pela ciência?
Desde o ensino
fundamental, que naquela época chamávamos “primeiro grau”, sempre tive
predileção por Ciências. Mas, no ensino médio, ou “segundo grau”, tive um
professor leigo, um estudante de Medicina em Curitiba que nos dava aula de
Biologia, que foi muito importante. Era uma pessoa extraordinária, para muito
além da sala de aula. Apesar das limitações, conseguia introduzir elementos
práticos; para aprender Zoologia, por exemplo, saímos a campo para buscar
insetos, borboletas, ou íamos ao Passeio Público observar os animais; também
saíamos para estudar Botânica… ele de fato foi uma pessoa importante para minha
vocação científica. Posso dizer que talvez mais de 90% dos ex-seminaristas que
conheço, que estudaram comigo, foram para a área de Humanas, fizeram Letras,
Direito, Comunicação. Sinceramente não sei de nenhum outro – acho que fui o
único – a ir para a área das ciências.
E como foi o começo
de sua carreira nas ciências e na universidade?
Fiz minha graduação
na Universidade Católica do Paraná, que hoje é a PUCPR, no fim dos anos 60. Dom
Manuel [da Silveira d’Elboux, arcebispo de Curitiba entre 1950 e 1970] tinha
fundado a universidade em 1959, pegando as faculdades católicas de Curitiba e
unindo-as numa universidade. Cada faculdade estava a cargo de uma congregação,
então foi uma transição demorada até haver uma administração única. A
universidade mesmo só se firmou em 1973. Eu estudei na Faculdade Católica de
Filosofia, Ciências e Letras, que ficava perto do Teatro Guaíra. Os professores
eram bons nomes da sociedade, Rudolf Lange, Ralph Hertel, mas não havia
pesquisa. Isso fez com que, assim que eu terminasse a faculdade em 1969, já no
ano seguinte eu fosse para a Federal, onde havia pós-graduação em Bioquímica.
Meu grande objetivo era, na verdade, a Histologia, mas não havia essa pós aqui,
então fui à Bioquímica. Estava quase me rematriculando quando alguém de São
Paulo que estava visitando Curitiba me disse: “A USP está abrindo um doutorado
em Histologia, por que você não vai para lá?” Peguei o ônibus naquela mesma
noite e deu tudo certo. Redirecionei minha história para São Paulo, onde fiquei
por quase quatro anos e de onde saí com o doutorado em Histologia, em 1976.
Posso dizer que a USP fez minha cabeça em termos de
universidade. Eu me considero um uspiano, a USP é para mim aquilo que chamam de alma mater, aquela universidade que lhe deu aquilo que você
em certo aspecto é e será sempre. Lá entendi o que realmente é uma
universidade, o que ela deve ser, qual o problema da universidade no Brasil, o
que é a ciência… Vinha muita gente do exterior. Estamos brigando aqui pela
internacionalização, e já nos anos 70 a área biomédica da USP não passava um
mês sem trazer alguém de fora do país. Isso nos abriu os olhos para a ciência
internacional, e foi daí que surgiu meu primeiro pós-doutorado, na Suécia: um
pesquisador de lá veio para a USP, se interessou pelo meu trabalho e me
convidou. Nesse meio tempo voltei para a UFPR para trabalhar, como concursado.
Foi nos anos 70 que a UFPR começou a se voltar para a pesquisa, até então era
quase exclusivamente voltada ao ensino. Fiz outro pós-doutorado nos EUA, nos
anos 80, e ainda voltei para lá nos anos 90. Também lidei com gestão
universitária a partir da década de 80, tanto na UFPR quanto no Ministério da
Educação. Foi fantástico trabalhar com o Cristovam Buarque, e lá criamos o que
viria a ser o ProUni.
À exceção da PUCPR,
toda a sua carreira foi desenvolvida em ambientes laicos. Havia algum tipo de
discussão sobre ciência e fé, ou estranhamento por parte dos colegas,
superiores e alunos?
Não havia patrulhamento nenhum, tanto que o Instituto Ciência e Fé, que hoje é dirigido
pelo professor Aroldo Murá, surgiu no ambiente da UFPR, tendo à frente Newton
Freire-Maia, um católico muito importante, e com a participação de pessoas da
área de Humanas da UFPR, além de membros da Católica. Não havia essa conversa
de “olha, isso aqui não tem nada a ver, Deus não existe”. Eu rezava o Pai-Nosso
antes de começar minhas aulas na UFPR e nunca houve protesto ou reclamação na
direção.
A fé, em geral, era
vista como algo perfeitamente corriqueiro. Mesmo na UFPR existiam e existem movimentos
ligados à fé. Quando estive lá, no próprio setor de Ciências Biológicas havia
um grupo que toda terça-feira se reunia para rezar e conversar sobre religião.
Era um grupo ecumênico, com gente de várias linhas religiosas. O grupo da UFPR
era bem eclético, de funcionários da limpeza até pesquisadores. O Natal e a
Páscoa na Federal eram celebrados na capela, com padre rezando missa. A
universidade tinha capelão, o padre Gusvato, um jesuíta extremamente culto,
capelão da UFPR e da Casa do Estudante Universitário, onde morava e da qual só
saiu por causa de uma doença. Outro caso é o da professora Glaci Zancan, um
nome respeitado nacionalmente tanto do ponto de vista científico quanto de
liderança voltada para a política científica. Nunca a vi falando de religião,
mas, quando ela faleceu, no velório havia muitas freiras que trabalhavam com
crianças abandonadas, meninas em risco, e descobrimos que ela destinava parte
do salário a esse trabalho. Conversando com as irmãs soube que a Glaci ia lá,
assistia à missa…
Hoje, talvez como
fruto do mundo que vivemos, existe mais uma “patrulha laica”. Acho que esse
processo começou em meados dos anos 2000, principalmente depois do 11 de
Setembro. Foi quando começaram a querer tirar crucifixos e outras ações
semelhantes. Não sou contra Estado laico; o Estado tem de ser laico, mas o
laicismo não pode virar fundamentalismo. Hoje, rezar antes da aula com certeza
daria até processo.
E no exterior? A
Suécia é um país altamente laicizado, já nos EUA há uma polarização forte que se
reflete também na discussão sobre ciência e fé…
A fé na Suécia é um
caso complicado. Era assim nos anos 70 e, pelo que sei dos amigos que mantive
lá, continua igual. Levamos um mês pra descobrir onde havia missa. E, quando
achamos, era um porão de um estabelecimento comercial em que uma vez por semana
um padre celebrava. As igrejas de Estocolmo, quase todas protestantes, no fundo
são pontos de visitação turística. Nos Estados Unidos fiquei em Connecticut, um
estado bem conservador, com forte presença judaica e baixo número de católicos,
embora a paróquia local estivesse sempre cheia de gente e tivesse catequese
para minhas filhas. Dentro da universidade discutia-se questões de ciência e
fé; há essa tradição americana e europeia das palestras e debates do meio-dia,
anunciados em murais, e os temas podiam ser bem profundos. A Universidade de
Connecticut é referência internacional em pesquisas sobre experiências de
quase-morte, por exemplo. Mas vi debates sobre “Gênesis sim, Darwin não”,
discussões sobre o papa João Paulo II… Na questão da pesquisa, havia suspeitas
de que certas agências privilegiavam alguns segmentos com base em crenças
religiosas. Veja o caso de George W. Bush, que barrou ao máximo a pesquisa com
células-tronco embrionárias nos EUA durante seu governo. Em alguns casos
percebíamos que havia coisas acontecendo relacionadas à fé, mas uma fé colocada
como algo que se sobrepunha à ciência. Os EUA têm, realmente, essa
característica.
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