(Causo de
Benedito Castilho, fazendeiro e carreiro de Santa Adélia).
Pra falar a
verdade, nessa longa vida de carreiro, nunca vi coisa assim esquisita, que a
gente pudesse gabar-se de ter visto, difícil de a gente contar. Pois, nossa
lida de antanho era porfia dura: sol, chuva, caminhos ruins, a tripas roncando
de fome, noites desdormidas encima de um couro cru, debaixo do mesão do carro,
isso era pão-nosso-de-cada- dia...
Comecei a
gatinhar por debaixo de eixo, aprumei pegando nos cambão andei tentando pegar
cabeçaio. Puro mal de família, coisa no sangue. Pai carreiro carreiro o avô...
Mas o Vô, o
véio Zé Bento, aquele tinha muito do que contar, vivo fosse. Despachado na
vida, era homem sem cisma nem querência, mas de pura serventia, existência
passada num cabeçalho de carro, escuitando vida afora o canto do chumaços, das
cantadeiras se esparramando pelo sertão do nosso Brasil. Muita estrada veio nos
picadão por ele cortado nas matas virgens.
Homem
inteiro, curtido na lixa dura do oficio... Se gostava da minha avó, disso não
afirmo nem descontrario, mas o carro e a boiada, aí sim, posso jurar. Fez de
meu pai outro mestre carreiro, a custa de muita sova de ajoujo, mas fez. E o
que é de raça, corre e caça!
O pai, que
Deus o tenha em sua graça, contava que só com dez anos, cangava os bois de
cabeçalho, com doze pegou o gado no meio de uma quiçada e aviou o carro que
estava especado na beira duma estrada carregado de telha, sozinho de sozinho...
Se não acreditar, não me enfado, nem fico desenxabido, mas vou contar: 'tavam
meu pai e meu avô carreando telha para um coronel. Eram três dias puxados de
caminho ruim. No meio tinha um riacho que corria por um barreal preto, formando
um tijuco danado para atolar. Pr'a escorar as rodas, só tinha ali macaúba, era
um descampado de sapezeiro de sumir de vista, não se achava nem uma vara para
matar uma cobra. Eles fez um estivado de macaúba, mas quando o carro já ia
terminando de passar, uma lasca se rebentou e o carro atolou até o eixo, por
sorte os bois já 'tavam no seco.
O Vô mandou
meu pai chamar a guia na reta, e quando as cinco juntas alinharam, bateu a vara
de ferrão cantando as argolas e chamou os nomes dos bois da linha de chave. Que
eram os turunas deles todos...
O carro
arrancou bonito mas, ao sair, os bois da contra-chave e coice falsearam, e os
quatro canzis da chave quebraram. O Vô desatou um balaio de palavrão, pois se o
pior tinha passado, ele só tinha um par de canzis novos.
Ruminou lá
duas idéias, colocou os canzis que tinha num dos bois, tirou outro par dum guia
e pôs no outro da chave. Mas ainda era muito peso, não dava para seguir só com
oito bois.
E o Véio
Bento, então, decidido, arrancou o facão e partiu firme para a cruz de Nhô
Inácio, ali pertinho, bem na beira da estrada.
- Não, pai!
Isso é pecado!
- Pecado
porcaria nenhuma! Pecado é deixá boi assando nesse solão... E a gente tem de
andar mais de légua para achar um mato e tirar um pau...
Desfez a
cruz, usou os braços para substituir os canzis, e lá foram. E légua e tanto
depois, chegaram à beira da mata, coisa de fazer medo. Soltaram os bois na
várzea, enquanto meu pai esquentava a matula meu avô entrou no mato, tirou um
par de canzis de perobinha e os pôs no lugar do outro, feito com a madeira da
cruz.
Ia jogar no
foguinho que esquentava a comida, mas vai saber se por respeito, que medo de
nada ele não conhecia, vai saber se por lembrança, pendurou os paus da cruz com
brocha e tudo num fueiro do carro.
E veio a
noite, noitão de beira de matão imenso, lerda e preguiçosa, imensa de escura e
negra só para um menino. Tinha todos os barulhos da noite no boqueirão, até que
de repente um silêncio esbarrou no tempo, se escancarou na boca da mata. O Vô e
meu pai, ali, de olho estalado, debaixo do carro, num sono que não vinha, nem
veio.
Inté que a
mataria alumiou, como nasce um dia, porque a lua, no seu terceiro dia de cheia,
subia no lombo do arvoredo, luz branca e fria. E meu pai a desfiar idéias,
entre o piado triste do curiango e o agoureio da coruja, um que outro gemido
denso do mutum lá no fundo dos confins...
Ninguém
despregava o olho da estrada. Não careceu de muito tempo. Com a voz entalada e
tremendo, o pai gaguejou pr'a o Vô:
-Pai! Laivem
ele...
-Quem?
-O Nhô
Inácio, pai...
-Fecha os
zóio e faz que 'tá drumindo!
Não fez,
mesmo! Arrepiado que nem gato do mato na ribanceira, dentes castanhando, viu o
vulto vir até o carro, tirar os canzis do fueiro e zarpar estrada afora. Ficou
vendo, longe, os canzis bamboleando nas brochas, quando batiam nas pernas
compridas de Nhô Inácio. Prá não dizer, o resto da noite foi só cochiladas,
sacudões de medo...
Quando a lua
faltava coisa de légua pr'a descambar pró outro lado do mundo, o Vô levantou,
mastigou um pedaço de rapadura, acendeu um cigarro de palha, pegou o facão e
disse pr'o pai:
-Quando o
dia sair, pegue os bois, vai fazendo o que puder até eu voltar!
E foi pr'o
mato, cortou um pau e tirou uma rodilha de cipó e foi de volta. Meu pai fez
tudo talqualzinho, cangou guia, chave e coice, arrumou toda a tralha e esperou
até que o Vô chegasse.
Ao menos
ficou ficou sabendo que já era, de verdade, um carreiro.Tinha tangido, cangado
e atrelado todas as juntas com perfeição, feito veterano. O Vô voltou,
assuntou, fez "Hum!" e nunca falaram mais disso, menos ainda da
assombração.
De aí, e por
muito tempo depois, o povo que passava pela cruz de Nhô Inácio e via os canzis
balançando, quando o vento soprava, no braço da cruz de guatambu amarrada com
cipó, nunca supunha que o defunto é que tinha ido buscar, no meio da noite,
quase matando meu pai de susto. O Vô, tenho certeza, sequer tremeu na pele
dele.
Ficavam pensando
que era promessa de carreiro, dessas acontecidas em hora de desastre ou
desgraceira ruim, dessas difícil de pagar.
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