quinta-feira, 22 de outubro de 2020

ESPAÇO DE LITERATURA: "DUBLIN, CIDADE LITERÁRIA!"

 DUBLIN, CIDADE LITERÁRIA



DUBLIN, CIDADE LITERÁRIA

 

Cineasta e professor universitário aborda o tanto e quanto de literatura e de seus grandes autores a capital irlandesa comporta em cada detalhe do cotidiano

 

Talvez a leitura – difícil, porém recompensadora – de ULISSES quando eu estava na faculdade, lá por 1978. Talvez a descoberta, pouco depois, de um Joyce mais acessível em DUBLINENSES. Talvez a emoção de assistir, nos anos 80, ao filme OS VIVOS E OS MORTOS, a adaptação de John Huston para o conto OS MORTOS. Talvez um exercício que costumo fazer em aula, quando falo sobre adaptações, a partir do trecho de ULISSES em que Leopoldo Bloom, numa praia quase deserta que parece Mariluz no inverno, troca olhares com uma desconhecida e depois faz coisas difíceis de decifrar (pelo menos na tradução de Antônio Houaiss). Talvez tudo isso, e mais alguma coisa que está na atmosfera que qualquer ser humano respira em Dublin, tenha me empurrado para essa série de observações sobre a cidade mais literária que já percorri na minha vida.

 

Toda cidade herda um pouco da obra de seus escritores. Paris é muito literária e é uma delícia visitar a casa onde viveu Balzac. O Rio de Janeiro é muito literário, pois Rubem Fonseca nos ensinou a caminhar nas ruas por onde também andaram Machado de Assis e Nelson Rodrigues. Porto Alegre é muito literária, no Bom Fim de Moacyr Scliar e no mapa poético de Mario Quintana. Mas Dublin é imbatível. Pra começar, os irlandeses em geral, e os dublinenses em particular, parecem ter orgulho de conviver com a memória de seus escritores e não poupam esforços para destacar suas grandes personagens ficcionais. Não é preciso ir ao museu ou à biblioteca. Basta entrar num pub ou caminhar pelas ruas do centro. Joyce está sentado no Temple Bar, e uma Molly gigantesca está na parede do Bloom’s Hotel. A literatura é cotidiana, está misturada ao uísque irlandês, à cerveja preta, à música dos bares, ao sotaque do motorista de táxi. Dublin come, bebe e respira literatura.

 

 

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Dublin é um bom exemplo da convivência entre o sagrado e o mundano. Um dos passeios obrigatórios na cidade é a catedral de Saint Patrick. Muito antiga (as primeiras edificações são de 1191), a igreja sofreu diversas reformas, mas ainda conserva vestígios preciosos da história irlandesa. Mas o que mais me impressionou foi encontrar ali, com grande destaque, o túmulo e um belo busto do escritor dublinense Jonathan Swift (1667-1745) – autor de AS VIAGENS DE GULLIVER, publicado anonimamente em 1726 – sempre tão festejado pelo mestre Aníbal Damasceno Ferreira, que costumava destacar a qualidade insuperável da prosa satírica swiftiana. Em minha abissal ignorância, não sabia que Swift foi decano, ou deão (uma espécie de bispo) da catedral, e que seus sermões, alguns deles publicados, eram muito famosos. Parece haver um grande abismo entre um satirista e um pregador, mas Swift teve uma vida política movimentada, fazendo céus e terras se confundirem bem antes do horizonte. Há pistas de Swift em muitos outros locais de Dublin, inclusive na famosa biblioteca do Trinity College, fundado em 1522, onde o próprio Swift estudou.

 

 

Outra surpresa foi saber que Swift deixou toda a sua fortuna, bastante considerável, para a construção de um manicômio que, na época de sua fundação (1757), chamava-se “St. Patrick’s Hospital for Imbeciles”. Damasceno, em seus dias mais inspirados, costumava chamar seus alunos da Famecos – sempre com um tom afetuoso, é bom que fique bem claro – de imbecis. Eu fui, com muito orgulho, um dos alunos imbecis do Aníbal. Não sei se há relação direta entre a doação de Swift e o estilo docente damascênico, mas faz bem pensar que sim. Atenção: com outro nome, o hospital para imbecis continua funcionando! E as aulas do Aníbal continuam ressoando nos corredores da Famecos!

 

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Meus respeitos para quem abandonou os livros e segue amando a literatura em qualquer plataforma digital. No final das contas, o que importa são as emoções que os textos provocam na mente humana, e não o suporte onde estão as letras. Mas, confesso, gosto de ver meus livros na estante. Um arquivo digital tem cheiro, pode ser restaurado se a capa cair, pode receber anotações, revistas anos depois, que permitem chegar mais rápido àquele trecho que não deveria sair da memória, mas navega rápido rumo ao esquecimento? Provavelmente esse último item funciona até melhor no mundo digital, mas o cheiro ainda espera uma ideia empreendedora de um nerd que está para nascer.

 

Visitar a Old Library, na Biblioteca do Trinity College, com seus 200 mil volumes belamente encapados e guardados por bustos de gigantes da literatura é uma experiência para não ser esquecida. O Trinity College, fundado em 1592, é a origem da Universidade de Dublin, que tem um campus belíssimo, por onde andaram, entre outros, Swift, Beckett e Joyce. Na Old Library também está guardado o Livro de Kells, evangelho confeccionado por monges celtas no século 9. Cada página é uma obra de arte. Essa biblioteca atrai milhares de turistas todos os anos e movimenta a economia de Dublin. Com certeza rende menos que o museu da cerveja Guinness, mas, como escrevi há pouco, álcool e literatura convivem bem nessa cidade. Dizer que a cultura e as artes não são prioridade para o Brasil é uma prova de indigência mental. Além de pilares da educação, podem ser bases sólidas para movimentar o turismo de uma cidade inteligente. Dublin mostra isso todos os dias.

 

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