O cantor e compositor Roberto Carlos nem sempre foi esse católico fervoroso que o Brasil conhece, autor de músicas religiosas como "Jesus Cristo", "O Homem" e "Todos Estão Surdos". Em 1965, quando gravou seu primeiro hit nacional, que extrapolou as fronteiras do país, o artista desagradou setores conservadores, foi criticado por padres e bispos, escandalizou até parte da imprensa, com sua balada romântica em que mandou tudo pra o inferno. A canção tocou seis meses sem parar, em São Paulo, no Rio, Belo Horizonte, nas cidades do Sul, Norte e Centro Oeste, chegando ao Nordeste com força, mexendo com a cabeça de adolescentes da época, como o alagoano Djavan, o pernambucano Alceu Valença, o paraibano Zé Ramalho, o cearense Fagner e a paraense Fafá de Belém.Todos, que depois se projetaram como grandes nomes da MPB sentiram um impacto, porque em meados da década de 60 do século passado o catolicismo era muito arraigado e inferno era uma palavra usada com cuidado, a não ser pelos padres nas missas, quando advertiam que o pecado podia levar as pessoas para um lugar terrível, onde iriam passar a eternidade na dor e no sofrimento.Em 1965 estávamos em plena ditadura militar, que tinha sido estabelecida no Brasil no ano anterior, depois de passeatas como a conduzida pela TFP defendendo "a família, Deus e a propriedade". "Quero que vá tudo pra o inferno" é uma canção romântica, feita para a namorada do cantor, Magda Fonseca, que estava nos Estados Unidos matando o futuro rei da música popular de saudades.Mas, sem intenção, Roberto soltou um grito de rebeldia, esbravejou contra tudo, disse que nada importava a não ser a amada por perto para lhe aquecer, e que tudo mais fosse pra o inferno.Alguns dos artistas citados gostaram do som, da letra, como foi dito acima. Mas outro cantor que seria popular no futuro, Wando, reagiu fazendo coro aos conservadores. "Esse cara não pode dizer isso", protestou o rapaz, conforme registra o escritor Paulo César Araújo em seu novo livro, que não se trata simplesmente de uma obra sobre Roberto Carlos, é uma espécie de enciclopédia da cultura brasileira, passando pela MPB, bossa nova, rock, pop, bolero e aqui e ali uma pitada de cinema, teatro e outras formas de arte.Paulo César revela por exemplo que o compositor de "Detalhes" era fã de filmes de faroeste e gostou muito de "A Face Oculta", bang bang dirigido e interpretado por Marlon Brando, um dos ícones do cinema mundial.A música "História de Um Homem Mau" teria começado a nascer na cabeça de Roberto após ele ver o longa de Marlon Brando. E, a pedido do artista natural de Cachoeiro do Itapemirim, um compositor conhecido como Roberto Rei fez a versão a canção, bem recebida pelo público em meados dos anos 60. Ela tocou bem nas rádios, especialmente no Rio de Janeiro, mas nada comparável ao "arrasa quarteirão" que foi "Quero que vá tudo pra o inferno". A canção de Roberto Carlos tocou sem parar em todo o Brasil, chegou com força à Argentina, à Venezuela e outros países da América do Sul, toda América Latina e alguns países da Europa, principalmente Portugal. Depois desse mega sucesso, o cantor que ralava desde 1959 para se firmar na música popular brasileira não precisou mais fazer shows em circos, como antes, virando o grande astro pop do país. Além do mais, quando a "canção de protesto" foi lançada, já estava no ar o programa Jovem Guarda, na antiga TV Record, que como consequência teve a sua audiência triplicada. Nara Leão, uma cantora de bossa nova e MPB regravaria "Quero que vá tudo pra o inferno" na década de 70.Em 1982, Belchior, compositor mais intelectualizado do que Roberto, faria a música "E que tudo mais vá para o céu", com citações diretas a canção de 1965.O autor de "Quero que vá tudo pra o inferno", incomodado com a reação de religiosos à música que o deixou famoso e rico, no ano seguinte, 1966, abriu seu novo disco com "Eu Te Darei o Céu". Claro que esta foi composta não só para cantar o amor, agradar seu público, mas também fazer um aceno amigável à Igreja Católica.Depois Roberto foi seguindo os passos da mãe, Dona Laura, católica praticante e foi ficando cada vez mais religioso, demonstrando isso em muitas das canções que fez, em gestos e atitudes diversas. Ele chegou a regravar a música dos tempos da rebeldia no LP de 1975, numa versão menos roqueira. Mas na sua cabeça, hoje, definitivamente não há como falar novamente em inferno.
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